domingo, 15 de junho de 2008

Conto : O reencontro


O sufoco é grande. Quase não respiro ar agradável. Jamais contemplo a alvorada e é sempre tão escuro e monótono. Minha existência é letárgica.
Às vezes, por inútil distração, eu observo o ambiente. Tudo inspira abandono: as ferraduras enferrujadas esquecidas na parede, o arreio empoeirado, a cela, as tralhas velhas. Não se encontra serventia para os objetos aqui depositados.
Pelas frestas da parede vejo a luz entrando tênue. É acentuado o cheiro do mofo e a poeira asfixiante. O pó divaga leve e sereno pelo feixe luminoso que penetra no aposento. O silêncio revela-se profundo, quase tumular. E não é isso que esse lugar tem sido para mim esse tempo todo? Um túmulo! Ninguém jamais se lembra que ainda permaneço aqui, sozinha e perdida.
Por longos e incontáveis dias, padeço na solidão. Tudo me importuna e não posso sequer reclamar. Não adianta chorar, maldizer, soluçar... Em templo ermo, são inúteis os lamentos.
Já não tenho o vigor de outrora. Estou carcomida pelo tempo, pelo ócio e pela espera que nunca termina. O resgate não chega. Em momento algum deram pela minha ausência. Espere!
Estranho... Assim de repente... Finalmente! Ouço passos apressados. Quem será que se aproxima do celeiro? Quem importuna o cadeado e profana o descanso das correntes?
Tento olhar dentre o monte de palha e feno. Vejo-a através de um espelho empoeirado. É uma senhora já roída pela idade. Parece-me familiar. É uma conhecida de anos. Mas o reflexo já não é o mesmo da última vez em que nos encontramos: o dia feliz e tumultuado de seu casamento.
Dia bonito aquele! Casou-se há cinqüenta anos. E posso humildemente dizer que fui indispensável na preparação de suas vestes matrimoniais. Nunca esqueci da maciez do tecido alvo rendado. A superfície mais fina em que um dia me debrucei.
A velha senhora escarafuncha a palha. Chama por mim. Tento responder, mas ela não me ouve. Deve ser efeito da surdez. Provavelmente.
Fuça, remexe. Mexe de novo. Investiga com minúcia. Pelo esforço que empenha em minha procura, pareço algo valioso apesar da aparência ignóbil. Revolve a palha. Encontra-me. Fita-me inconsolável. Vejo lágrimas vertendo-lhe dos olhos. Já a vi chorar, uma vez, por celebração da vida que começara com seu matrimônio. Hoje o choro é amargo e triste. É pranto de quem perdeu uma parte de si mesmo.
Toca-me com cuidado. Suas mãos ainda tremem. Veste-me com uma linha. Costura comigo um velho vestido negro puído. Seu único traje de luto, que se fez necessário naquele momento.


Elaine Siqueira

Um dinossauro na era da informática




Quem ao recordar os anos escolares não se lembra das carteiras perfiladas, do quadro negro escrito a giz e do cheiro inconfundível de álcool que se desprendia das lições impressas no mimeógrafo? Mime... O quê? Quem não lembrou é porque não tem mais de vinte anos e nem freqüentou a rede pública de ensino.

A descrição acima não é saudosismo, mas o retrato fiel de muitas escolas que, em plena era da informática, se vêem privadas de recursos tecnológicos e munidas de artefatos obsoletos na prática pedagógica. O mimeógrafo é um ícone dessa obsolescência.

O avô das fotocopiadoras foi inventado no final do século XIX nos Estados Unidos e usado para reproduzir textos e figuras. Mais de um século já se passou. Nesse meio tempo o homem já foi à Lua, desenvolveu armas nucleares, lançou-se no ramo da robótica e da tecnologia digital. O velhinho movido a manivela resiste para o consolo dos professores da rede pública limitados pela falta de infra-estrutura das escolas.

“Apesar de ser um recurso bastante antigo e antiquado é utilizado nas escolas devido ao baixo custo com sua aquisição e manutenção. Além de acessível, é um equipamento portátil de uso coletivo entre os professores”, disse a professora Márcia Tuckmantel, que há vinte anos leciona na rede estadual de ensino.

Embora haja vantagem econômica, comparando-se com as impressoras e as fotocopiadoras, a qualidade da impressão não é das melhores. “A impressão muitas vezes sai borrada e isso compromete a legibilidade,” conta Márcia.

A tecnologia avança, mas a verba não chega às escolas. O mimeógrafo, para o espanto de professores e alunos, está longe de ser aposentado. E as páginas repletas de borrões e letras falhadas permanecerão ainda por muitos anos sobre as mesas escolares.

Elaine Siqueira

O que os jornais não noticiaram sobre o Haiti














“Os corpos ficavam estirados no chão. Ninguém, a não ser os cães, tocava neles”. Essa foi a primeira impressão que o soldado Anderson teve ao chegar a Porto Príncipe, em meados de 2005, para participar da Missão de Paz organizada pela ONU.
A violência instaurada nas principais cidades do Haiti, desde a renúncia do presidente Aristide em 2004, produziu um sem número de mortos. “Os cadáveres permaneciam nas ruas sem preocupar os que passavam, pois eles já estavam acostumados com aquela situação” concluiu o militar.

Ainda sem conhecer a situação caótica instalada no país, o soldado embarcou rumo a capital Porto Príncipe, junto com 1500 colegas, para integrar as Forças de Paz da ONU. “Quando disseram que era Missão de Paz, pensamos que era para distribuir alimento e remédio, além de prestar primeiros socorros. A gente não sabia que tinha que invadir favela. Eu não estava preparado. No quartel a gente só dava tiro em barranco”, disse o soldado.

Em vez de prestar a tão noticiada ajuda humanitária, os soldados da ONU receberam ordens expressas para invadir becos e favelas a procura de armamentos roubados, do exército haitiano, por insurgentes. “Logo que chegamos, tivemos que invadir uma casa cheia de rebeldes. Fosse pra matar ou morrer, nós tínhamos que entrar. Meu colega, que segurava uma metralhadora, entrou em choque dentro do carro de combate. Quase provocou um acidente sério”, contou o soldado sobre a primeira missão que recebeu em solo haitiano.

Os rebeldes eram, sem dúvida, os alvos das tropas da ONU. Nos confrontos, porém, muita gente inocente morreu. Segundo o militar brasileiro, várias crianças sucumbiram vítimas de balas perdidas. “Não dá pra saber se a munição saiu de armas militares ou se saiu da arma dos criminosos”, afirma.

As informações fornecidas pelo soldado certamente surpreendem. Poucos brasileiros sabem o que de fato ocorreu – e ainda ocorre – entre as Tropas da ONU e o povo haitiano. Os jornais não noticiaram as atrocidades cometidas lá e o motivo dessa negligência não se sabe.

Segundo Anderson, nem as famílias dos militares envolvidos sabiam do que se passava no Haiti. “Um dia após enfrentar rebeldes, num tiroteio que durou quase uma hora e que causou a morte de vários soldados da ONU, liguei para minha mãe para dizer que estava tudo bem comigo. Ela, até então, de nada sabia por que no Brasil nenhum jornal havia dado a notícia.”


Elaine Siqueira