segunda-feira, 14 de julho de 2008

Crônica: A confusão das marmitas




Antes de optar pelo jornalismo, cursei magistério numa escola de período integral. Embora fossemos muito jovens, a maioria adolescente, havia um esforço exagerado para nos mostrar mais responsáveis do que de fato éramos. Penso que aspirante a professor primário precisa demonstrar, para si e para os outros, que amadureceu mais cedo.

Nada de extraordinário acontecia. Os dias arrastavam-se monótonos. Não se matavam aulas. Não se pulavam os muros do colégio. (Pelo menos não com a mesma freqüência com que se fazia nas outras instituições de ensino médio). Os alunos seguiam a risca as orientações dos professores.

A delação, um ótimo instrumento implantado pelos diretores de postura militar, tornou-se a atividade preferida dos mais mesquinhos. A quem transgredisse as normas conservadoras da escola, a punição era severa. (Uma colega foi suspensa das aulas uma semana porque pintou o cabelo de rosa, mas essa é outra história.)

Como disse, estudava o dia inteiro. A bolsa de estudos não era suficiente para custear todas as despesas. Para economizar com a alimentação, recorríamos a uma solução muito barata e pouco prazerosa: a marmita.

O cheiro das comidas diversas, requentadas no marmiteiro, empestavam o refeitório. Por mais que tentássemos ao máximo diversificar o cardápio, a refeição era quase sempre insípida. Mas nunca inodora. Principalmente a de quem passou o curso todo levando ovos fritos na marmita. A “Menina dos ovos fritos”, como ficou conhecida, virou motivo de piada entre os alunos do primeiro ao último ano. A aparência de responsáveis não os impedia de ser cruéis.

E foi no refeitório que dois colegas de turma resolveram aprontar uma traquinagem digna de Pedro Malasarte. Escolheram uma manhã de segunda-feira, não por acaso, pois era o dia letivo em que se almoçava melhor. As marmitas chegavam ao aquecedor abastecidas com as sobras do domingo. Só a menina dos ovos fritos não levava nada diferente. Na segunda feira lá estavam os mesmos olhos redondos e amarelos olhando para ela.

O sinal da entrada soou às sete da manhã. Todos os alunos subiram para suas salas. Menos o Fábio e a Marisa, que se dirigiram clandestinamente para o refeitório. Eu, que estava ali por acaso, acabei cúmplice do malfeito. Não por coação. Gostei da brincadeira. Fiquei vigiando a porta. Fossemos surpreendidos, era problema na certa.

Os dois avaliaram os marmiteiros. Havia três, e cada qual continha duas bandejas. Diariamente se depositavam ali cerca de duzentas marmitas de várias cores, formas e tamanhos. Não era tão simples encontrar a própria comida. Tínhamos em mente uma espécie de plano cartesiano do marmiteiro.

Orientávamos-nos, grosso modo, da seguinte maneira: “Coloquei minha vasilha azul no lado esquerdo da bandeja superior do marmiteiro central, entre a vermelha e a amarela”. No horário de almoço era só seguir as coordenadas geográficas e... Pronto! Podia-se mastigar a refeição.

Fábio e Marisa, caprichosamente, agruparam todos os recipientes conforme correspondência de cores, desfazendo as acomodações originais. Enquanto se divertiam, eu vigiava a porta.

Ouvimos o sinal da segunda aula. Subimos. Fizemos nossas atividades habituais mal podendo conter a ansiedade. Ríamos por dentro. O sinal do meio-dia finalmente soou. Descemos rápido. Começara a confusão.

Os alunos entreolhavam-se estupefatos. Puseram-se a procurar as marmitas. Os donos das coloridas as encontraram com certa facilidade. Coitados dos que levavam recipientes de alumínio! Havia um marmiteiro todinho reservado àqueles cilindros idênticos. Alguns deles até continham identificação nas respectivas tampas. Meus amigos galhofeiros não hesitaram em trocá-las.

Decidiram abrir uma após a outra até encontrar a comida familiar, antes que as aulas recomeçassem. Murphy, entretanto, existe... E é implacável. Quem começasse procurando a marmita pela esquerda, a encontraria na direita. Começasse por cima, acharia em baixo. Se o espertinho tentasse alternar entre esquerda e direita, a encontraria exatamente no centro. Aquilo foi um verdadeiro pandemônio.

Olhei para o pilar e notei uma atitude deveras inteligente. Uma garota encostou-se ali e somente observou o esforço dos demais. Certamente, deixaria todo o trabalho duro para os outros, esperando para pegar a marmita que sobrasse. Seria uma ótima idéia, não fosse adotada por mais alunos também desanimados. Logo, ao menos quinze estudantes se enfileiravam escorados na parede do refeitório.

Àquela altura, as alunas já estavam enraivecidas. O sinal que indicava o início das atividades vespertinas havia ressoado. As garotas que ali permaneceram ainda sem almoçar, balbuciavam impropérios. Todas pareciam furiosas. Todas. Exceto uma.

Enquanto eu fitava o aposento, meus olhos estacionaram sobre alguém que se ria jocosamente. Num canto furtivo da extensa sala, de semblante ainda incrédulo, lá estava a menina dos ovos fritos prestes a devorar um farto bocado de lasanha que, misteriosamente, aparecera em sua marmita.


Elaine Siqueira

8 comentários:

Anônimo disse...

uhAUEhuAEhuaEAE
Simplesmente perfeito.
E quem diria que aquilo poderia virar historia!!
uuhAUEuAEUHehAEuAE

Thaís disse...

Eu quero ser igual a Elaine quando eu crescer.

Você já nasceu jornalista menina! Deve ser bom estar no caminho certo!

Um bjo
Bom restinho de férias!

Shamatar disse...

Bem-vinda ao time dos apaixonados por diários virtuais. Escrever é sempre uma boa terapia.Gostei do seu blog. Se quiser, passa lá em casa pra tomar um chá. Bjão, bom recomeço!!

Dante Raphael disse...

hahahaha
*rindo muito aqui*
aprontaram com estilo... quem olha esse rostinho, nem imagina com oé danada rsrs
acho que nem um Saci faria melhor xD rsrsrs
vai trabalhar aqui em campinas quando se formar né?!.. tipo EPTV hã hã hã?! =]

leãozinho disse...

poxa, + esse CEFAM era um curso de preparação para vida de traquinagens.....rsrsrs

Reaper Jr. disse...

PowtZ, e eu lembro desse dia, ri muito. Ainda bem que eu levava meu lanche em vez de marmita, auheaheahheuahe!! Tem bastante história pra contar hein! Abração, tou por aí.

Ed.

Elaine Siqueira disse...

Olha Ed... foi hilario mesmo!!! bons tempos aqueles, não?

Anônimo disse...

Se quiser colocar aquela do Hector, ainda temos que falar a respeiro - e antes de novembro!

http://ponto23.wordpress.com/